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Multitudinous Heart
Selected Poems A Bilingual Edition
By Carlos Drummond de Andrade, Richard Zenith Farrar, Straus and Giroux
Copyright © 2015 Graña Drummond
All rights reserved.
ISBN: 978-0-374-71393-5
CHAPTER 1
ALGUMA POESIA
SOME POETRY
(1930)
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
SEVEN-SIDED POEM
When I was born, one of those twisted
angels who live in the shadows said:
"Carlos, get ready to be a misfit in life!"
The houses watch the men
who chase after women.
If desire weren't so rampant,
the afternoon might be blue.
The passing streetcar's full of legs:
white and black and yellow legs.
My heart asks why, my God, so many legs?
My eyes, however,
ask no questions.
The man behind the mustache
is serious, simple, and strong.
He hardly ever talks.
Only a very few are friends
with the man behind the glasses and mustache.
My God, why have you forsaken me
if you knew that I wasn't God,
if you knew that I was weak.
World so large, world so wide,
if my name were Clyde,
it would be a rhyme but not an answer.
World so wide, world so large,
my heart's even larger.
I shouldn't tell you,
but this moon
but this brandy
make me sentimental as hell.
INFÂNCIA
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu ... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro ... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
CHILDHOOD
My father rode off on his horse to the fields.
My mother sat in a chair and sewed.
My little brother slept.
And I, on my own among the mango trees,
read the story of Robinson Crusoe.
A long story that never ends.
In the white light of noon, a voice that learned lullabies
in shanties from the slave days and never forgot them
called us for coffee.
Coffee as black as the old black maid,
pungent coffee,
good coffee.
My mother, still sitting there sewing,
looked at me:
"Shhh ... Don't wake the baby."
Then at the crib where a mosquito had landed.
She uttered a sigh ... how deep!
Far away my father was riding
in the ranch's endless pasture.
And I didn't know that my story
was more beautiful than Robinson Crusoe's.
LAGOA
Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.
Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
e calma também.
Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa ...
LAKE
I never saw the sea.
I don't know if it's pretty,
I don't know if it's rough.
The sea doesn't matter to me.
I saw the lake.
Yes, the lake.
The lake is large
and also calm.
The rain of colors
from the exploding afternoon
makes the lake shimmer
makes it a lake painted
by every color.
I never saw the sea.
I saw the lake ...
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
IN THE MIDDLE OF THE ROAD
In the middle of the road there was a stone
there was a stone in the middle of the road
there was a stone
in the middle of the road there was a stone.
I will never forget that event
in the life of my exhausted retinas.
I will never forget that in the middle of the road
there was a stone
there was a stone in the middle of the road
in the middle of the road there was a stone.
QUADRILHA
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
SQUARE DANCE
João loved Teresa who loved Raimundo
who loved Maria who loved Joaquim who loved Lili
who didn't love anyone.
João went to the United States, Teresa to a convent,
Raimundo died in an accident, Maria became a spinster,
Joaquim committed suicide, and Lili married J. Pinto Fernandes,
who had nothing to do with the story.
CORAÇÃO NUMEROSO
Foi no Rio.
Eu passeava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
MULTITUDINOUS HEART
It happened in Rio.
I was walking on the Avenida close to midnight.
Breasts were bouncing amid lights flashing countless stars.
The promise of the sea
and the jangle of streetcars
tempered the heat
that wafted in the wind
and the wind came from Minas Gerais.
My paralytic dreams the ennui of living
(life for me is the wish to die)
reduced me to a human barrel-organ remotely
in the shopping arcade of the Hotel Avenida sultry sultry
and since I knew no one, just the soft wind from Minas,
and didn't feel like drinking, I said: Let's end this.
But an excitement throbbed in the city its long buildings
cars with tops down zooming toward the sea
the sensuously roving heat
a thousand gifts of life for indifferent people,
and my heart beat violently, my useless eyes cried.
The sea was beating in my chest, no longer against the wharf.
The street ended, where did the trees go? the city is me
the city is me
I am the city
my love.
NOTA SOCIAL
O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos ...
O poeta está melancólico.
Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.
O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico.
SOCIAL NOTES
The poet arrives at the station.
The poet steps off the train.
The poet takes a taxi.
The poet goes to the hotel.
And as he does all this
like any earthly man,
hoorays pursue him
like hoots.
Waving pennants
open up to make way.
Bands play. There are fireworks.
Speeches. People in straw hats.
Cameras ready to click.
Cars standing still.
Cheers ...
The poet is melancholy.
In a tree on the public promenade
(laid out by the current administration),
in a fat tree imprisoned
by colorful posters,
in an ordinary tree that no one sees,
a cicada is singing.
A cicada that no one hears is singing
a song that no one applauds.
It sings, in the blistering sun.
The poet enters the elevator
the poet ascends
the poet shuts himself in his room.
The poet is melancholy.
POEMA DA PURIFICAÇÃO
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.
As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.
PURIFICATION POEM
After many battles
the good angel killed the bad angel
and threw his corpse in the river.
The waters were stained
by a blood whose red wouldn't fade,
and the fish all died.
But one day a light
from nobody knew where
arrived to illumine the world,
and another angel nursed the wound
of the fighter angel.
CHAPTER 2
BREJO DAS ALMAS
SWAMP OF SOULS
(1934)
SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
SONNET OF MISSING HOPE
I missed the streetcar and am missing
hope. Downhearted, I head
home. The street is useless,
and no car would run me over.
I'll climb the slow slope
where the paths all come together.
They all lead back to the beginning
of the drama and the flora.
I don't know if I'm suffering
or if someone's having fun
(why not?) with a cryptic flute
on this stingy night. But I know
that for ages we've been crying
Yes! to the eternal.
POEMA PATÉTICO
Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.
Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta de meu coração.
EMPATHETIC POEM
What noise is that on the stairs?
It's love coming to an end,
it's the man who shut the door
and hung himself with the curtain.
What noise is that on the stairs?
It's Guiomar covering her eyes
and blowing her nose like a horn.
It's the plates and pans in the pantry
lit up by a still moon.
What noise is that on the stairs?
It's the faucet dripping water,
it's the indiscernible cursing
of someone who lost the game
while the music from the band
keeps getting softer, softer.
What noise is that on the stairs?
It's the virgin on a trombone,
the child beating a drum,
the bishop ringing a bell,
and someone stifling the din
that's leaping from my heart.
NÃO SE MATE
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
DON'T KILL YOURSELF
Carlos, calm down, love
is exactly what you're seeing:
a kiss today, none tomorrow,
the day after tomorrow's Sunday,
and Monday no one knows
what will happen.
There's no use fretting,
let alone committing suicide.
Don't do it, don't kill yourself,
save yourself, all of you,
for the wedding to take place
no one knows when,
if ever.
Love spent the night in you,
Carlos, earthly Carlos,
and desire, seeking expression,
stirred an ineffable inner hubbub,
prayers,
record players,
saints crossing themselves,
ads for the best soap,
a hubbub about no one knows
what, or why.
And you keep walking,
melancholy and upright.
You're the palm tree, you're the shout
no one heard in the theater
and all the lights went out.
Love in the dark, no, in daylight,
is always sad, my dear Carlos,
but don't tell anyone,
no one knows or will know.
SEGREDO
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
SECRET
Poetry can't be communicated.
Stay knotted up in your corner.
Don't love.
I hear there's shooting
and we're within range.
Is it the revolution? Love?
Don't say a thing.
Everything's possible, only I'm impossible.
The sea's overflowing with fish.
There are men who walk on the sea
as if on the street.
Don't tell.
Suppose an angel of fire
were to sweep the face of the earth
and the people being sacrificed
begged for mercy.
Don't beg.
CHAPTER 3
SENTIMENTO DO MUNDO
FEELING OF THE WORLD
(1940)
SENTIMENTO DO MUNDO
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
(Continues...)
Excerpted from Multitudinous Heart by Carlos Drummond de Andrade, Richard Zenith. Copyright © 2015 Graña Drummond. Excerpted by permission of Farrar, Straus and Giroux.
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